domingo, 28 de dezembro de 2014

Sobre o que se deve guardar


Depois de muito de me afogar em exageros, depois de muito ter os pulmões inundados por palavras liquefeitas em fel, depois de tantos espinhos cravados na pele fazendo jorrar pequenos fragmentos da minha fé na reciprocidade, depois de todos, depois de tudo, em meio ao mundo, seus olhos tão pequenos de um castanho assim, comum. E o comum nunca me pareceu tão poético quanto agora. Toca Johnny Cash repetidamente enquanto escrevo essas linhas pra você não ler, e imagino teus olhos tristes e famintos sobre mim, me observando como se quisesse capturar a minha alma num piscar lento e apaixonado. Digo, apaixonante. Assim como tudo em você, querido.

Da minha boca saem flores e foi você quem semeou todas elas. Olhe pra dentro de mim e veja as raízes se ramificando em meu coração e envolvendo-o por completo. São raízes de amor fincadas delicadamente até se tornarem tão profundas quanto um mar aberto. Se arrancar vai sangrar, rasgar, doer, vai arder, queimar feito ácido em contato com o peito. E no lugar resta um buraco enorme do tamanho dos teus olhos pequenos. Paradoxo perfeito das nossas imperfeições. Veja, querido, guarde esse amor longe dos ventos contrários, pra que ele permaneça pulsante e cravado por tempo suficiente pra durar uma vida inteira. Preciso que você o proteja da fumaça cotidiana que asfixia e mata a beleza da rotina, pra que ele não morra. Peço pra que você o livre dos caminhos desencontrados, da falta de interesse, pra ele não ser arrancado, não secar de ausência. Regue-o com teu choro baixinho de saudade. Guarde, querido. Seu coração me parece um bom lugar pra estar.

sábado, 12 de abril de 2014

Janela da alma


Você transborda intensidade e eu tento te dizer que a minha alma não comporta tanto. Tem resquícios de vidas passadas aqui dentro que não deixam mais nada entrar. Eu e a minha mania de guardar coisas velhas. Você e sua mania de querer engolir um planeta inteiro sem pausas. Dentre tantas virtudes, te falta paciência. Em minha pele você vai escrevendo esse amor enquanto crava as unhas na curva da minha costa. Cada vez mais profundo. Espere um pouco, meu bem. Só mais um pouco e você me atinge a alma. Aos poucos ela vai ficando leve pra caber você. Você me aperta como se seus dedos pudessem atravessar a pele, músculos e ossos. Você e sua mania de achar que eu caibo na palma das mãos. Use os olhos, meu bem. Eu me vejo refletida nos seus. Eu já estou dentro de você. Atravesse os meus olhos, me invada sem que eu perca a visão. Esteja refletido neles. Cada vez mais. 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Profundo e atemporal


Ontem, no ponto de ônibus, havia um senhor que aparentava ter uns 80 anos de idade. Ele tinha os cabelos bem alvos, até as sobrancelhas eram branquinhas e eu olhei feito criança curiosa. Orelhas e nariz grandes - ouvi dizer que essas partes do corpo não param de crescer. Os olhos caídos aparentavam a tristeza de quem já viveu demais, e ainda há o que viver! As rugas estavam por todo o rosto, marcas que a vida trouxe pra dizer que o tempo passa, passa e nos leva a juventude. Mas, veja pelo lado bom, nos traz a experiência e sabedoria em meio aos calos de quem já andou um bocado até aqui. O corpo daquele senhor era franzino, flácido, uma barriga enorme e um andar vagaroso de quem não tem pressa alguma, a vida por si só já passa mais rápido do que os olhos conseguem acompanhar. 

Me peguei tentando imaginar aquele senhor quando ainda era jovem, comecei a fantasiar a vida dele inteira. Achei que ele tinha cara de "seu Domingos" e fui chamando-o assim o caminho inteiro (em meu pensamento, é claro). Sempre fui meio maluca. Tentei prever se ele teve muitos sonhos, se saía aos fins de semana, se teve muitas namoradas. Tentei adivinhar qual ônibus ele estava esperando, se ele tinha muitos netos, se ele tinha uma senhora simpática esperando por ele em alguma varanda. E foi aí que eu pensei em algo que realmente me fez escrever esse texto. Me imaginei amando um velhinho como ele e, acreditem, o olhava procurando motivos para amá-lo. Motivos. Como os meus olhos poderiam capturar motivos? Os motivos não são expelidos pelos poros, continuei pensando.

Quando a gente é jovem e sonha em encontrar um cara lindo, da pele macia, músculos definidos, cabelos bem cuidados, com uma pegada boa, a gente em algum momento pensa no tempo que não para? Quero dizer, a gente imagina que tudo isso vai virar lembrança e que a gravidade modifica nossa aparência? Imaginei aquele senhor, e sua respectiva senhora, olhando um pro outro e ainda percebendo através dos olhos o amor de antes. Alguém já disse que os olhos são a janela da alma, e é por meio disso que as pessoas se reconhecem mesmo com o passar nos anos. Mas, e se a gente ama só o que vê? E se a gente ama o corpo de alguém? E se a gente ama o que nossas mãos conseguem tocar? 

Amar com os olhos, com o corpo, com as sensações que o outro provoca, talvez não seja amor completo. E se não há plenitude, não há amor. O incompleto não basta, não faz música, não aquece. Já tentei algumas vezes, mas nunca consegui me imaginar velhinha, com cabelos brancos e rugas (só sei que quero ter saúde quando esse tempo chegar). Agora, depois de olhar o "seu Domingos" no ponto de ônibus, tento imaginar como será o meu -quem sabe- amor. Eu vou olhar pras rugas e procurar o mocinho de anos atrás? Eu vou olhar pros cabelos brancos e desejar a cor novamente? Por uns instantes eu duvidei da constância do sentimento. Então eu finalmente cheguei em casa com a sensação de que o amor é atemporal. Tive a certeza de que o motivo daquela senhora esperar aquele senhor com um sorriso no rosto, mesmo que os olhos já não mostrem uma beleza jovial, é que ela o amou por dentro. E os olhos não podem enganar a alma. Comecei a pensar que eles (o ilustre casal desconhecido que deu origem a esse texto) estão fisicamente mudados, mas ainda se reconhecem profundamente, como se estivessem enraizados um no outro. 

Eles se amaram por dentro, continuei pensando. O amor não é cego, ele só nos faz ver por dentro. Quando o amor escorre na pele, é porque já cresceu e tomou conta da alma inteira. Quando o amor não está preso aos olhos, consegue resistir ao tempo e ser como deve ser: profundo e atemporal. 

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Versinho de número dois


Há um abismo de dúvidas que se calam diante da imensidão de carinho que deságuas em mim.

(Em meio ao caos, você, amor.)